Poliartrite imunomediada idiopática canina, descrição de um caso
Ariele Rodrigues 1
Felipe Cincerre Pipoli 2
Ricardo Erotildes Barbosa 3
Mara Lucia Gravinatti 4
1 Graduanda em Medicina Veterinária. Centro Universitário Central Paulista (UNICEP), Rua Miguel Petroni 5111, 13563-470 São Carlos, São Paulo. ORCID: 0009-0002-4662-0662. reab.arielerodrigues@gmail.com
2 Médico Veterinário Especialista em Procedimentos Cirúrgicos. ORCID: 0009-0007-2572- 8654
3 Médico Veterinário Especialista em Anestesiologia. ORCID: 0009-0001-1307-5066
4 Doutora em Ciências Veterinárias, docente UNICEP. ORCID: 0000-0003-0862-4873
Resumo
A poliartrite imunomediada se trata de uma reação de hipersensibilidade do tipo III, que leva formação e acúmulo de imunocomplexos no espaço articular. Uma vez depositados, há ativação do sistema complemento, que resulta em dado tecidual, liberação de citocinas, atração de neutrófilos e mais citocinas que agravam o quadro clínico do animal. Os sinais clínicos podem ser edemas articulares, claudicação, dor à palpação articular e febre. O diagnóstico é por exclusão e a análise do líquido sinovial é considerada padrão-ouro, porém se faz necessário outros exames para redução dos diagnósticos diferenciais. O tratamento tem o objetivo reduzir os sinais clínicos e promover qualidade de vida ao paciente.
Descritores: Artrite, Hipersensibilidade, Dor, Claudicação, Qualidade de Vida
Introdução
A doença articular inflamatória pode-se manifestar sob caráter imunomediada ou infecciosa, como artrite séptica, poliartrite por leishmaniose e/ou riquétsias. Nas imunomediadas são divididas em erosivas (poliartrites reumatoides) ou não erosivas (poliartrite reativa ou idiomática e sinovite linfoplasmocitária) (Nelson & Couto, 2015).
Na poliartrite imunomediada (PIM) há um envolvimento simétrico das articulações, que se apresentam inchadas e dolorosas a palpação (Clements, et al., 2004). Outros sinais clínicos são febre cíclica, inapetência, rigidez, claudicação e relutância ao movimento (Larrote, 2015).
Já a poliartrite imunomediada idiopática não apresenta causa identificável, sendo, geralmente, diagnosticadas por exclusão (Fossum, 2015). E é categorizada em quatro subtipos:
a) tipo I, sem doença subjacente; b) tipo II, reativa; c) tipo III, enteropática; e, d) tipo IV, neoplásica (Johnson & Mackin, 2012). Sendo a tipo I, a forma mais comum, representando cerca de 50 a 65% dos casos (Rondeu, 2005; Johnson & Mackin, 2012).
Acredita-se que a patogênese seja pela reação de hipersensibilidade do tipo III, com a formação e acúmulo de imunocomplexos no espaço articular. Uma vez depositados na articulação, há ativação do sistema complemento resultando em dano tecidual e liberação de citocinas, das quais atraem neutrófilos, que por sua vez liberam mais citocinas e enzimas lisossômicas agravando o dano tecidual (Bennett, 2010; Johnson & Mackin, 2012).
O diagnóstico de PIM ocorre pela análise do líquido sinovial, porém são necessários outros exames esclarecer outros diagnósticos diferenciais de outras afecções articulares, por exemplo: artrite séptica, doença articular degenerativa, artrite reumatoide e neoplasias (Johnson & Mackin, 2012; Fossum, 2015).
Johnson & Mackin (2012) recomendam incluir outros exames laboratoriais, tais como:
hemograma completo, painel bioquímico, exame de urina e cultura de urina (no caso de bacteriúria). Geralmente os animais acometidos apresentam: leucocitose, anemia não regenerativa e hipoalbuminemia, mas achados normais não descartam poliartrite. Além disso, doenças infecciosas sistêmicas podem levar a poliartrite imunomediada, como: borrelioses, bartonelose, leishmaniose, erliquiose e anaplasmose, assim, testes de reação em cadeia da polimerase (PCR) e testes específicos podem ser considerados na investigação diagnóstica.
Os achados radiográficos auxiliam no diagnóstico de exclusão, já que na PIM idiopática não há alterações ósseas, apenas efusão de líquido sinovial e edema de tecidos moles periarticulares (Fossum, 2015).
A artrocentese é a técnica padrão ouro, pois permite avaliar a articulação em casos de suspeita de doença articular, avaliar resposta a tratamentos e possibilita classificar a amostra como normal, traumática, degenerativa ou inflamatória. A análise do líquido sinovial inclui características físico-químico e o exame citológico; representada por achados como: volume normal ou aumentado, coloração amarelo ou serossanguinolenta, turbidez, viscosidade reduzida e neutrofilia. Já a análise citológica pode auxiliar o diagnóstico diferencial, mas não consegue diferenciar a doença imunomediada da doença infecciosa (Clements, 2006).
O tratamento visa a remissão, a longo prazo, com a menor dose possível de medicação, além da prevenção da recorrência da inflamação articular. Os tratamentos são específicos para cada tipo de manifestação da poliartrite. No caso da PIM recomenda-se o uso terapia imunossupressora, mais usualmente os glicocorticoides (Johnson & Mackin, 2012).
A dosagem deve ser titulada para evitar efeitos colaterais (poliúria, polifagia e aumento de peso). Se for necessário aumentar a dose ou os efeitos indesejados estiverem de difícil controle, recomenda-se utilizar outros imunosupressores, como: Ciclofosfamida, Azatioprina ou Leflunomida (FOSSUM, 2015). Segundo os estudos de Johnson & Marckin (2012) não há evidências que comprovem que um tratamento é melhor que o outro. Portanto, a eficácia irá depender do paciente e de grau de tolerância aos efeitos colaterais.
Aconselha-se iniciar o tratamento com doses imunossupressoras de prednisona, prednisolona ou metilpredinisona (2 a 3mg/Kg, SID ou BID ), que deve ser administrado até que não haja mais evidência de inflamação articular e/ou ausência dos sintomas clínicos. A regressão gradativa é realizada a cada 2 a 3 semanas em 25% até que a dose fisiológica seja de 0,2mg/kg/dia (Johnson & Mackin, 2012). Em casos de poliartrite refratária, indica reavaliação para doenças infecciosas, poliartrite reativa e/ou doença erosiva (Nelson & Couto, 2015).
O uso de analgésico, como tramadol, gabapentina e amantadina são importantes para o controle da dor permitindo a redução gradativa dos imunossupressores. Além disso, o uso de condroprotetores, como Ômega 3 e antioxidantes, o controle do peso e a fisioterapia auxiliam na melhora da qualidade de vida do paciente (Nelson & Couto, 2015).
De acordo com os estudos com 39 cães, Clements (2004) aponta que 56% responderam à terapia, 13% recaíram, mas obtiveram sucesso posteriormente, 18% necessitaram de terapêutica mais longa e apenas 15%foram sacrificados ou morreram por outras causas. Considerando isso, o prognóstico para a maioria é bom.
O objetivo deste trabalho é apresentar o relato de um canino atendido com sintomatologia sugestiva de poliartrite imunomediada idiopática.
Descrição do caso
O paciente, um canino, sem raça definida, 13 anos, chegou com o relato de andar rígido e dificuldades de subir escadas. O paciente apresentava prévios exames laboratoriais e de imagem (hemograma, bioquímico e radiografia lombossacral), sem nenhuma alteração.
Durante o exame clínico, o paciente apresentou rigidez em membro torácico, dor e crepitação nas articulações cárpicas, restrição da flexão da articulação umeroradioulnar direito.
A princípio suspeitou-se de doença articular degenerativa e artrite, sendo prescrito o uso de antiinflamatório não esteroidal, Carprofeno (2,5mg/kg, SID, 10 dias) e condroprotetores (Ograx Arto® e Condroplex 1000®), para uso contínuo.
No retornou (após 10 dias), o paciente apresentou aumento significativo das articulações (Figura 1), modificando a suspeita diagnóstica para poliartrite imunomediada. Foi solicitado radiografia das articulações acometidas e coleta do líquido sinovial. Sendo então prescrito corticoterapia com Prednisona (1mg/Kg, SID), por 10 dias com regressão gradativa de dose e retorno em 10 dias.
Foi realizada a radiografia da região carpo e tarso esquerdos na projeção mediolateral, dorsopalmar e dorsoplantar, que não apresentaram alterações radiográficas em partes ósseas e relações articulares, porém, observou-se aumento de volume de tecidos moles sugestivo de edema (Figura 2).
Figura 2. Imagem radiográfica do paciente apresentando regiões com edema (seta branca). (A) Articulação do tarso do membro pélvico esquerdo; (B) Articulação do carpo do membro torácico esquerdo. Fonte: Arquivo pessoal, 2023
Os achados da radiografia descartam as hipóteses iniciais de doença articular degenerativa e/ou artrite erosivas. Dessa forma, a análise do líquido sinovial seria o próximo passo para a investigação. Na literatura, a coleta do líquido é bem tolerada por alguns pacientes, porém o risco durante o procedimento é maior. Como o paciente apresentava dor a manipulação da articulação a conduta anestésica foi de sedação com alfa2 agonista (dexmedetomidina, 5µg/Kg), opioide (butorfanol, 0,2mg/Kg) e dose analgésica do anestésico dissociativo (cetamina, 1mg/Kg), associado a bloqueios locorregionais com lidocaína 2% sem vasoconstrição. A lidocaína é um anestésico local que possui alta lipossolubidade, o que permite um bloqueio sensorial e motor. Sua duração varia entre 40 a 120min, com um tempo de latência de 15 a 20min (Klaumann et al. 2013).
O bloqueio dos ramos proximais dos nervos radial e ulnar realizado por meio da técnica infiltrativa de anestésico locais é indicada para procedimentos cirúrgicos rápidos, de mínimo estímulo doloroso, podendo ser realizada “as cegas”, sem auxílio de neurolocalizador. Para o bloqueio do ramo dorsal do nervo ulnar a agulha é inserida no subcutâneo dorsolateral distal à articulação do carpo, e para o bloqueio do ramo palmar do nervo ulnar a agulha é introduzida na posição ventrolateral distal à articulação do carpo (Figura 3). Por ser ramos superficiais é sugerido o bloqueio com lidocaína 2% ou bupivacaína 0,5%, sem vasoconstrição
(KLAUMANN, et al. 2013).
O bloqueio dos ramos dos nervos isquiático e femoral/safeno foi escolhido como técnica de anestesia locorregional, possui baixa probabilidade de complicações e são os principais representantes do plexo lombar e do plexo sacral respectivamente, os quais podem ser bloqueados de maneira combinada em diferentes níveis, com o objetivo de produzir anestesia regional cirúrgica. Embora a técnica seja fácil de ser executada, Portela (2013) enfatiza que os bloqueios do nervo femoral e isquiático devem ser preconizados com auxílio do neurolocalizador.
O bloqueio do nervo isquiático irá produzir dessensibilizarão da pele lateral e caudal da coxa, ligamentos capsulares da articulação coxofemoral. No entanto, o bloqueio desse nervo irá atingir o ramo isquiático, dessensibilizando também o nervo tibial que é responsável pela sensibilidade da articulação do tarso, a qual foi utilizada para coleta de líquido sinovial no paciente (Portela, 2013).
A abordagem lateral ao nervo isquiático é de fácil execução e promove dessensibilização de toda a região anatômica inervada pelo nervo isquiático e por seus principais ramos: nervos tibial e peroneal (Portela, 2013). A tuberosidade isquiática e trocante maior do fêmur são os pontos de referência. Na execução do bloqueio foi possível sentir a depressão do espaço entre esses acidentes ósseos, traçando uma linha imaginária que unem as duas protuberâncias e criar um ponto central para a infiltração (Figura 4).
Para o bloqueio inguinal do nervo femoral/safeno se faz necessário o conhecimento da região anatômica e das possíveis complicações por lesões iatrogênicas. Durante a execução da técnica é possível identificar o triângulo femoral (Figuras 5), e a pulsação da artéria femoral servirá como guia para a introdução da agulha, que deve ser feita pela frente (cranialmente) da artéria numa inclinação de 20 a 30º direcionada no sentido dorsal (Portela, 2013). Esse bloqueio irá dessensibilizar a inervação da região medial e proximal da coxa, medial do tarso, articulações femorotibial, cápsula articular e estruturas internas (Portela, 2013).
A coleta do líquido sinovial deve ser realizada de maneira estéril, com preparação e antissepsia do local a ser puncionado. O carpo deve ser flexionado a 90º, uma depressão corresponde ao espaço articular, é palpável e a região é distal ao rádio. Deve-se inserir a agulha medialmente ao tendão extensor digital comum, buscando esquivar da veia cefálica e evitar o tendão radial do carpo (medialmente). Para aspirar a articulação tarso, deve flexionar o tarso para localizar o espaço articular, em posição neutra, insira a agulha no espaço dorsolaterial (Figura 6) (Wood; Gibson, 2021).
O procedimento foi realizado acessando o ponto mais edemaciado da articulação cárpica, sendo coletado aproximadamente 1ml de conteúdo. E de acordo com Wood e Gibson (2021), em pequenos animais e nas articulações do carpo e do tarso isso é normal, pois eles possuem menor volume de fluido sinovial.
Resultados
Os achados da análise do líquido sinovial (Figura 7) mostram que o fluido apresentou uma coloração avermelhada, com quatro cruzes para sangue oculto e presença de hemácias, podendo indicar contaminação sanguínea iatrogênica (Sherry, 2014). A turbidez apresentou alterada podendo significar contagem elevada de células, especificamente neutrófilos e linfócitos, achado comum em infecções e doenças imunomediadas (Clements, 2006). O aumento de proteínas sugere doença inflamatória, já que o líquido sinovial possui baixa concentração de proteínas (Sherry, 2014). Em relação a presença de glicose, segundo Clementes (2014) não há importância diagnóstica em caninos, apenas em fluido de humanos e equinos.
Devido ao volume reduzido da amostra, optou-se por realizar apenas análise físicoquímico e a citologia do líquido sinovial. A citologia é uma avaliação importante para identificar as células predominantes, o que permite classificar o líquido sinovial como inflamatório ou não inflamatório. Além disso, a identificação de qualquer bactéria intra ou extracelular possibilita saber a origem infecciosa da doença articular inflamatória (Clements, 2006).
A alta contagem de neutrófilos é comum em artrite séptica e imunomediada, isso porque as afecções articulares imunomediadas como lúpus eritematoso e a sinovite linfocítica plasmocítica podem apresentar predomínio de células mononucleares (linfócitos) (Permen, 1980; Pederse, 1976; Tatarunas, et al. 2004).
O resultado do laudo citológico concluiu como sendo um processo inflamatório linfoplasmocitário moderado associado a degeneração de células sinoviais, cujo padrão citológico é indicativo de sinovite crônica.
Foi estabelecido como tratamento inicial a corticoterapia com prednisona (1mg/Kg, SID), por 10 dias, com redução gradativa da dose. Ao final dessa terapêutica o paciente obteve melhora clínica com redução dos edemas articulares e claudicação. Nesse período foi realizado a coleta do líquido sinovial para análise e citologia.
O laudo citológico apontou um quadro de sinovite crônica, que pode estar associado a complexos imunomediados (poliartrite imunomediada) como consequências de processos infecciosos anteriores, migração de protozoários (Leishmania sp.), lesões traumáticas, extensões de lesões ósseas, ruptura de ligamentos ou lesões degenerativas. Como a citologia é um método de triagem, o diagnóstico deve sempre ser correlacionado com o histórico, clínica e exames complementares.
Após 20 dias da finalização do tratamento com a prednisona (tratamento empírico antes do laudo da citologia), o paciente retornou com o quadro de dificuldade para se levantar e discreto aumento nas articulações cárpicas. No exame físico apresentou dor na avaliação das articulações (coxofemorais, joelhos, cotovelos, carpo e ombro) com crepitação.
Diante disso, foi prescrito Azatioprina (2,5mg/kg, SID) por 20 dias, na tentativa de amenizar os efeitos colaterais da prednisona, como polifagia, poliúria e ganho de peso.
O paciente fez uso da medicação pelo tempo recomendado e retornou após 60 dias sem o uso dela, apresentando remissão total dos sinais clínicos, sem edema, crepitações e/ou dor a palpação das articulações, principalmente cárpicas e társicas (Figura 8).
Conforme as recomendações do veterinário responsável, o paciente continuará fazendo o uso contínuo de condroprotetores (Ograx Arto® e Condroplex 1000®) e gabapentina (127 ml/Kg, BID) para controle analgésico. Atualmente o paciente obteve melhora significativa dos movimentos, sem apresentação de dor e com isso, uma melhora na qualidade de vida.
Considerações Finais
A poliartrite imunomediada idiopática é diagnosticada por exclusão, já que não tem uma causa identificável ou um sinal patognomônico. Os achados radiográficos auxiliam na identificação de alterações ósseas e outras patologias erosantes da articulação. Já a artrocentese permite a realização da análise do líquido sinovial afim de obter informações sobre a articulação e o tipo de celularidades predominante e com isso classificar a doença articular, porém é limitante pois não é possível diferenciar doença imunomediada de infeciosa. Também é utilizada para acompanhamento a resposta a tratamentos.
Além disso, outros exames são importantes na investigação de poliartrite imunomediada, como hemograma completo, painel bioquímico, exames de urina e principalmente painel de doenças infecciosas. Devido a restrições financeiras do proprietário não foi possível a realização de novos exames hematológicos e de exames complementares para investigar processos infecciosos que produzem imunocomplexos.
Dessa forma, foi concluído um diagnóstico presuntivo de poliartrite imunomediada já que o animal respondeu a corticoterapia apresentando melhoras nos sinais clínicos.
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